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Destaques

Vou ter que tomar remédio para sempre?

Uma das perguntas mais frequentes no consultório de psiquiatria é se o paciente terá que tomar o medicamento para sempre ou por um longo período. A resposta é: depende. A duração do tratamento psiquiátrico depende de diversos fatores. Não existe um padrão de tempo e nem sempre conseguimos prever a sua duração. Alguns diagnósticos exigem tratamentos prolongados, podendo se estender por toda a vida, como é o caso da esquizofrenia ou do transtorno bipolar. No caso da esquizofrenia, trata-se de um transtorno incurável, e a sua condição pode piorar progressivamente ao longo da vida. A interrupção da medicação pode resultar no retorno dos sintomas positivos (delírios e alucinações), e o tratamento a longo prazo pode garantir melhor qualidade de vida melhorando os sintomas negativos (como as dificuldades sociais, redução das demonstrações de emoção e falta de prazer nas atividades diárias). No transtorno bipolar, o tratamento contínuo pode evitar novos episódios de mania e depressão, bem como...

Como funciona o vício?

Quando nos referimos ao vício, dependência ou adicção, estamos falando de um comportamento compulsivo, que significa a realização de uma ação, premeditada, consciente, mas sem o autocontrole para impedi-la. O principal e mais grave exemplo é o vício em drogas, mas podemos citar também o vício em jogos de azar, pornografia, videogame, compras, redes sociais…


A neurologia por trás do vício

A Teoria Dopaminérgica é a mais aceita para explicar o vício, que propõe que um certo circuito cerebral, a via mesolímbica, age como a via de reforço e recompensa para tudo que é prazeroso. Esse é o famoso Sistema de Recompensa e, por este motivo, a dopamina é conhecida popularmente como o “neurotransmissor do prazer”.

Segundo essa teoria, toda vez que realizamos uma atividade prazerosa, como uma conquista esportiva, uma boa nota, comemos um doce, ouvimos uma boa música, temos um orgasmo, essa via é ativada, partindo de uma região chamada Área Tegmental Ventral (ATV), que libera dopamina no núcleo accumbens (vide a ilustração abaixo), gerando a sensação de prazer. Evolutivamente, é uma recompensa da natureza por termos feito um “favor à nossa espécie”. O cérebro dizendo “obrigado por fazer sexo e preservar a espécie,  receba este prazer”, ou “obrigado por comer este alimento calórico que irá te manter vivo, receba este prazer”.


A ATV, que enviará dopamina no circuito do prazer, é estimulada por substâncias (neurotransmissores) naturais do cérebro. Estes são a endorfina, os endocanabinoides (como a anandamida), a acetilcolina e a própria dopamina.
Resumindo com um exemplo: Quando seu time marca um gol, essas substâncias acima ativam sua ATV, que libera endorfina no núcleo accumbens, e você sente prazer!

Porém, essas substâncias internas têm “parentes” externos, presentes nas clássicas drogas de abuso, que vão agir onde seus “primos” naturais do cérebro agem. Os opióides, como heroína, morfina e codeína, têm a mesma ação da endorfina; a maconha age como a anandamida; a nicotina, como a acetilcolina; e os estimulantes, como cocaína e anfetaminas, ativam a dopamina. Por esse motivo, essas drogas geram prazer ao usuário, simulando o estímulo natural. Porém, elas são mais potentes que nossos neurotransmissores naturais, ou seja, geram mais prazer. E aí está o perigo! O usuário passa a buscar essas substâncias, procurando um “barato” mais intenso e imediato.


Mas até agora não falamos de vício. Descrevemos apenas como algumas substâncias geram “barato”. Agora, para o uso de uma droga se tornar uma dependência, é preciso uma adaptação cerebral para o comportamento compulsivo.

Dependência é compulsão!

Quando alguém faz o uso repetitivo de uma droga nessa busca por prazer, o cérebro se modifica, cria novas conexões, gerando um mecanismo de compulsão. A pessoa perde o autocontrole do uso dessa droga e se torna uma "marionete", sem vontade própria no que se refere à busca e ao uso da substância.
Nesse estado compulsivo o dependente não é mais recompensado somente pelo efeito neurológico da substância, como ocorre inicialmente, mas também pela antecipação do uso. Ou seja, buscar a droga já gera bem estar, assim como tudo que envolve o uso, como o manuseio da seringa, do cachimbo ou do baseado da droga, ir a um ambiente que tenha droga disponível. O mesmo ocorre em outros vícios, como acessar o site pornográfico, ir ao fast food, ligar o videogame, postar uma foto que gerará muitos likes… O contrário também é verdadeiro, e não ter acesso à droga deixa o usuário irritado, ansioso, até agressivo.

O experimento ilustrado abaixo, chamado "O Cão de Pavlov", ajuda a explicar como funciona a mente de um dependente:


Esse experimento mostra que, ao condicionar o cachorro de que o som do sino significa comida, ele irá salivar apenas ao ouvir um sino. Do mesmo modo, um viciado irá sentir prazer apenas de saber que tem um baseado dentro de casa à disposição.

O vício é uma doença terrível! Além dos danos causados pelo uso sem controle de substâncias que vão fazer mal para o corpo, o dependente deixa de cuidar da sua vida, seus estudos, trabalho, saúde, família, alimentação, gastos financeiros e outras muitas atividades diárias.  A pessoa pode chegar ao extremo da perda de controle sobre si, a  ponto de cometer crimes, agressões e até suicídio. O dependente também tem maior chance de ter novos vícios, sempre buscando saciar seu circuito de prazer cada vez mais desregulado.

E por que nem tudo que é gostoso se torna um vício?
Para uma substância ter risco de viciar, ela precisa gerar prazer e, preferencialmente, seu efeito deve durar pouco tempo. Quanto mais prazer uma droga gera, maior será o estímulo para usar novamente. Do mesmo modo, quanto menor for a duração do seu efeito, maior será a frequência de uso e consequentemente mais intenso fica a adaptação para o uso compulsivo, gerando a dependência. Em contrapartida, uma droga que gera pouco prazer ou que seu efeito dura por longas horas tem menor risco de dependência. 


Esse é um assunto ainda nebuloso até para a neurociência, e trazer para uma linguagem acessível é um desafio. Muitas são as dúvidas de inúmeros pacientes, e nossa meta é chamar a atenção para a importância de debatermos as consequências das dependências para pacientes, famílias e comunidades. 

Bibliografia:
1 - Stahl psicofarmacologia : bases neurocientíficas e aplicações práticas / Stephen M. Stahl. 5. ed. Rio de Janeiro : Guanabara Koogan, 2022.

 

Dr. Lucas B P Carneiro
Médico pela UFMG
PG psiquiatria
Editor do blog Cuidar da Mente
Instagram @dr.lucasbcarneiro

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